"Hoje vamos aprender o que não fazer: A Culpa é da Mãe" (Entrevista com Ricardo Pipo - Parte 1)

Santiago Dellape: Queria, de forma bem amena, que você começasse falando sobre os fracassos do grupo, particularmente o texto do Martins Pena que vocês nunca chegaram a encenar com os irmãos Guimarães, e também Hamlet. A que você atribui a má sorte dessas montagens?


Ricardo Pipo: Hamlet na verdade foi um sucesso igual ao que a gente tinha na época, não foi exatamente um fracasso. A gente era muito mal visto pela galera catedrática, galera da UnB. Tiveram aulas temáticas de professores falando assim: “Hoje vamos aprender o que não fazer.” Aí escrevia no quadro assim “A Culpa é da Mãe”. E aí os alunos falavam com a gente: “Cara, o professor hoje desceu a lenha em vocês.” Porque a UnB era contra a comédia de uma forma geral – o que é muito errado – e você poder cobrar ingresso antes de estar formado. Toda profissão tem estágio, né? Eu já acho errado o curso não ensinar a editar um vídeo, como postar no YouTube, novas mídias, o que você tem que fazer. Então você se formar ator e ficar esperando alguém te contratar, não vai acontecer. Você tem que saber divulgar o seu trabalho. Uma coisa meio estranha, tinha muito esse preconceito com a gente, falando que a gente era besteirol, o que eu adoro, falar que é um humor grotesco, porque é um estilo, né? A galera via como pejorativo chamar a gente de besteirol, a gente sempre adora. A gente é besteirol também. Eu acho que tem tudo no nosso espetáculo: tem a bobeira, bobeira, bobeira, Chaves, repetição de circo, ficar repetindo, repetindo, a cena da almofadinha no Hemanoteu, aquilo é circo básico. [...] O diretor que nós chamamos era do Dulcina, o Antonio Fabio, professor do Dulcina. E ele era um dos caras que meio que criticava a gente, e ele ficou de cara: “vocês querem eu dirigindo vocês? – Sim!” Entendeu? Pra galera ver que é uma opção, não é falta de talento você montar... Não é isso, é opção. Aí montamos Hamlet original, muito foda, muito foda mesmo, eu fazia a Ofélia, a Adriana fazia Hamlet, aí usamos carta na manga né, todos os truques. E existia um personagem cômico, que era o Welder que era o bobo, que fazia aquelas marionetes pro Rei... Aí o Welder destruía, era a hora da risada, mas o resto era muito intenso. A trilha sonora era ao vivo, a gente aproximou a plateia mais pro centro do palco, botamos uma rotunda preta atrás da plateia do Garagem. Então a gente tinha esse espaço atrás da plateia que a gente podia circular do camarim... A trilha era feita ali atrás, então de repente atrás do público tocava um trompete: pananam! Quando aparecia o fantasma. Aí tinha o tímpano, a galera cagava (de medo). Era aqui atrás, de repente era desse lado, desse lado, a gente usou 5.1 no Garagem, fazendo isso ao vivo. Contratamos um puta trompetista, e a peça foi um sucesso absoluto. 


Os Irmãos Guimarães perderam o que eles tinham de melhor, que eram atores dirigíveis, e a gente perdeu o de melhor nosso que era a espontaneidade, o improviso mesmo. Eles tentaram dirigir muito a gente, e a gente tentou muito improvisar, isso se chocou e não deu certo. Era um texto que tava completando 100 anos, era As Desgraças de uma Criança, texto de Martins Pena, uma comédia de 100 anos, então tinha piadas assim: “ô seu escurrupicha galhetas”. O que é isso? Você tinha que assistir a peça com uma Barsa, porque nem Google vai achar essa porra. Escurrupicha galhetas era o cara que roubava vinho na sacristia, isso era praticamente uma gíria na época. Então o que a galera do teatro sempre fez? Falou a linguagem popular. Shakespeare apresentava nas feiras, extremamente popular. E batia nos poderes. Acho que a gente muito que entendeu isso: tem que falar o que a galera entende, falar uma linguagem que o público absorva. Então a gente pode pegar As Desgraças de uma Criança e botar piadas de hoje, que funciona. Não foi a proposta dos Irmãos Guimarães. E não tava funcionando. Eu acho até que eles são meio gratos à gente por ter flopado. Aí faltava uma semana pra estreia, era o ensaio geral, lá no (Teatro) Garagem. Falamos: “galera, não vamos fazer”. Meu grupo se reuniu, “não vamos fazer, e aí?" Como que a gente fala isso pra eles? Vamos falar pro James (Fensterseifer), que o James era envolvido na produção, e era o nosso produtor, a gente falou “vamos falar com James primeiro”. Aí fomos pra casa do James todo mundo. Quando o James falou que acordou de manhã, sábado, abriu a janela e viu nossos carros estacionando ele falou: “Ah, fudeu véi”. A gente subiu: “James, não vamos fazer não”. Ele: “Puta que pariu, como assim, como é que eu vou falar pra eles?” A gente: “não, a gente fala”. Mas e aí, o teatro? Tem multa, a gente falou: “não, a gente assume isso também”. Aí chegou lá foi horrível porque tava todo mundo animadaço. Pô tinha Dora Wainer, Bidô Galvão, Murilo Grossi, super elenco reunido... e a gente! (risos) – super elenco e a gente. A chegamos lá: “gente, sei que tá todo mundo animado aí, mas não vai rolar não”. Caralho, aquele “peido”. “Não, mas tem o teatro…”, a gente: “não, a gente assume essa merda”. A galera foi embora no sábado de manhã, aí ficamos meio-dia sentados na porta do Teatro Garagem pensando sobre isso né: “cara, e agora?”. Vamos pagar a multa do teatro, aí perguntamos quanto era: “é, não vai dar, não temos grana pra isso”. “Então vamos fazer uma peça!” Pô, a gente sempre fez peça temática, tem a peça tema de política, tem não sei o quê, tema religioso... sexo! Sexo é um assunto que todo mundo sabe exatamente do que a gente tá falando. Humor é lastro. A gente já fez peça por exemplo chamada “Deux”, essa peça tá escrita, nunca foi montada, que era todos os deuses que criaram o mundo, cada um na sua mitologia, eles se reúnem de tantos em tantos bilhões de anos, e fazem um balancete sobre o planeta criado, ver se tá bom ou se tá ruim. Se estiver ruim, eles decidem destruir. Na última reunião, que eles sortearam, e caiu pro Deus católico destruir, e alguém vazou a informação (risos). Alguém vazou. E aí o cara construiu uma arca. “Pô, alguém vazou essa merda.” Aí eles fazem a reunião de novo, “vamos destruir?”, “vamos”. Mas aí o Deus católico deu mole, quem é que vai destruir? Pois é, e agora? Eles falam: “então vamos abduzir um ser humano aleatoriamente no planeta, em quem ele acreditar, esse Deus vai destruir o planeta.” OK, aí abduz, claro, um ateu. Aí começa a discussão da peça. Velho, essa peça é uma comédia escrachada, ninguém ia rir. Ninguém ia rir porque você tem que sacar de muita coisa, mitologia católica principalmente, grega, tudo, tudo. Tem que misturar aí várias criações, desde antepassados... a indigenista, que é muito pouco conhecida... Então por exemplo essa peça a gente nunca montou porque não tem lastro. A gente ia fazer pra galera catedrática, ia dar um público ali que talvez ia rir, mas não era o caso. A gente falou assim: “sexo, todo mundo sabe exatamente do que a gente tá falando”. Mas a gente nunca foi desses de falar “peru, cu e buceta”, como é que a gente vai fazer isso? Aí fizemos uma peça que fala sobre os arredores, né? É um assunto que todo mundo fala, mas ninguém comenta. Muito interessante né? Ninguém fala sobre o sexo, mas todo mundo fala. No Brasil existe uma restrição quanto a isso, mas não: é proibido, mas se quiser pode. Aí foi um sucesso, um sucesso absoluto. Porque a gente usou isso mesmo, o constrangimento que o assunto causa. Sempre na periferia né, o assunto é muito periférico. Então a gente fez encontro de swing, a primeira vez que o casal se encontra e é um constrangimento. Por mais que seja um casal liberal, “não é muito a minha, fazer sexo mesmo sem conhecer a pessoa”. Essa cena eu acho muito legal. Tem uma cena que eu acho muito evoluída, nesse sentido, que é a cena do Emílio e Montenegro, que é um casal homossexual, casal de homens se despedindo na rodoviária. É claro, aqui francamente falando, que a gente usou o fato de ser um casal homossexual para potencializar a piada. Por que? Não porque você deve rir de um casal homossexual, mas porque a cena começa e todo mundo acha que é uma mulher. Quando entra um homem, já é a primeira quebra de expectativa. Quebra de expectativa é comédia. Não importa qual seja, entendeu? Então virou uma cena que eu considero muito moderna hoje, foi uma cena que a gente não mudou nada nela, nada no texto, e não tem argumento contra ela, porque se você botar um homem e uma mulher, não muda nada do texto. Você entende? Não é sobre isso que estamos falando. Estamos falando sobre uma despedida de pessoas muito apaixonadas. E a gente já usou isso entre dois homens. E se você botar um homem e uma mulher não muda absolutamente nada no texto. Então isso pra mim é vanguarda, é modernidade de alguma forma. E aí foi isso, esses dois fracassos entre aspas [...] Depois eles montaram Martins Pena sem a gente e foi um sucesso grandioso, sem a gente. Na Martins Pena, sem ser no Garagem. Quer dizer, montaram na Martins Pena, muito maior, com um elenco muito melhor, e foi muito melhor pra todo mundo. [...] Nessa época do Zorra Total, o Maurício Sherman [diretor do Zorra Total na época] veio à Brasília assistir a gente, ele assistiu Sexo, a Comédia. Ele falou: eu quero o grupo, e quero essa cena do Emílio e Montenegro, a cena dos gays se despedindo na rodoviária. Mas ele falou pra gente assim: "Aí não pode ser gay, porque na televisão, dois homens, tal…". A gente disse: "Sherman, tanto faz." Aí ele percebeu, ele falou: "Ahhh, não muda nada." Eu falei: "Não muda nada. Bota mulher." Aí botou o Welder e Adriana. Jajá e Juju surgiu a partir de uma adaptação de uma cena de teatro que a televisão encaretou.

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